Qual beleza cura?
27 de fevereiro de 2019
Um bebê nunca é “conveniente”
3 de julho de 2019
Mostrar tudo

Um olhar “agricultural” sobre a educação

Por Bruno Magalhães

Na visão de boa parte das pessoas que geralmente emitem opinião em almoços de família, bares e cantinas de empresa, a educação é a solução para todos os mais graves problemas nacionais. Segundo parece, a falta de educação é culpada pela má-escolha de nossos representantes políticos, pela corrupção com dinheiro público, pela desestruturação das famílias, pelo alto índice de homicídios e assaltos, pelo uso de drogas, pelas traições conjugais, pelo lixo jogado na rua, pela má-qualidade de nossos artistas, pelo baixo nível da programação dos canais de televisão etc.

Com isso em vista, compreende-se que, conforme a sabedoria popular, a educação transforma as pessoas e as torna capazes, por sua vez, de transformar, para melhor, a vida em sociedade.

Porém, todo livro sobre políticas públicas educacionais escrito a partir dos anos 2000 indica que, no Brasil, a taxa de matrículas de crianças em idade escolar em estabelecimentos educacionais estabilizou-se em algo em torno de 97%. A instituição da matrícula obrigatória e universal, somada à rígida fiscalização da assiduidade por parte das secretarias de educação e dos conselhos tutelares, garante que esse panorama não tende a se modificar. Enfim, conseguimos colocar todas as crianças dentro da escola.

Por outro lado, o Brasil é o país que conquista algumas das mais vergonhosas posições em testes internacionais de educação e, para além disso, é um dos países onde mais se cometem assassinatos (em 2018 ocorreram, no país, mais de 62 mil homicídios).

Ora, se a educação transforma as pessoas, e se toda criança brasileira está na escola, por que nosso país não foi (e não vem sendo) transformado em um lugar melhor? Dito de outro modo: se tantos e tão dedicados professores estão fazendo aquilo que, segundo a opinião majoritária das pessoas, deve ser feito, o que está dando errado?

Não é o caso de contestar a opinião registrada no primeiro parágrafo: a educação tem, efetivamente, um poder transformador. Nisso eles não estão errados. Porém, não se trata de qualquer educação. Se a rosa não perde seu perfume porque a chamamos por outro nome, também é verdade que uma segunda coisa não se transforma em educação apenas porque assim a denominamos. Assim, os opinadores populares estão certos quando identificam a solução, mas errados quando projetam essa solução em uma enorme geringonça que foi inventada para que o Estado cumpra seu dever de educar a todos.

Então, a educação que é apontada como a solução para os nossos problemas não pode ser a educação que é ministrada hoje nas escolas públicas e privadas de nosso país (geralmente a única que vem à cabeça das gentes). Isso porque, embora haja exemplos notáveis de sucesso na atividade educacional contemporânea, trata-se, na maior parte das vezes, de uma flor que furou o asfalto e o tédio, surgida no meio de uma terra devastada. E apesar das flores que aparecem aqui e ali, não é possível esconder: enquanto promessa civilizacional, a educação contemporânea, quer seja pública, quer seja privada, é um fracasso retumbante. É pouco – muito pouco – que a educação nos torne pessoas mais polidas (capazes de dizer bom dialicença e obrigado) e nos prepare – insuficientemente, na maior parte das vezes – para o exercício de uma profissão.

Por quê?

Porque a educação tem a missão de contribuir para o florescimento do indivíduo – de lhe dar a possibilidade de alcançar tudo aquilo de que ele é capaz como ser humano.

Então, se não temos sido capazes, através do ensino, de ajudar as pessoas a florescer, é preciso perguntar pelas causas desse fracasso. E uma resposta possível para essa questão passa por resgatar a dimensão agricultural da educação.

Ora, para extrair da terra tudo o que ela tem a oferecer, é preciso atentar a pelo menos três fatores: a natureza do terreno e suas condiçõesa qualidade da semente e a habilidade do semeador. Se é assim, é fácil entender por que, num ambiente de professores relativamente mal-qualificados, a matrícula obrigatória e universal de todo mundo na escola é um fator complicador. Estamos jogando sementes aleatórias aos alunos, sem lhes trabalhar as condições de aprendizado, e queremos que ao final apareçam belos frutos. Ora, isso só acontecerá por um milagre.

Para além disso, a educação também tem uma semelhança com o amor – conforme Platão deixou entender no diálogo Banquete, em que a busca pela sabedoria é comparada à busca apaixonada de uma pessoa por outra. Nesse sentido, nossa educação é constituída, em quase toda a sua extensão, por casamentos arranjados. Não é estanho que boa parte desses relacionamentos não tenham e não estejam indo bem.

Enfim, a natureza agricultural e amorosa da educação indica-nos que só há aprendizado onde há um desejo forte e genuíno, mantido vivo e trabalhado num ambiente de atenção e de relativa liberdade. É a isso que, intuitivamente, as pessoas se referem nos almoços de família, nos bares e nas cantinas das empresas quando dizem que a educação é a cura para todo mal. Porém, essas pessoas não chegam a atinar que por trás da palavraeducação há uma polissemia que atrapalha tudo – e terminam com a conclusão de que o problema da educação é que ainda há gente fora da escola ou a defasagem do salário dos professores. Ou seja: o que essas pessoas dizem tem origem numa intuição relativamente acertada da realidade, porém aquilo para o que elas apontam é apenas um simulacro, uma fraude, que não entrega o que promete.

Rigorosamente falando, só há verdadeira educação onde há disposição sincera do aluno, o que é um outro modo de dizer que o conhecimento só vem para quem está à sua espera. Se a família, a escola, enfim, a sociedade, não é capaz de estimular nas crianças e nos jovens o senso de abertura curiosa para a realidade, nada feito: as escolas continuarão a ser depósitos de gente pequena.

A esse propósito, José Ortega y Gasset (Quatro textos excêntricos, Editora Relógio D´Água) identificou três grupos de pessoas que frequentam os colégios: o dos indiferentes,o dos interessados e o dos necessitados – sequência na qual o nível de imitação diminui à medida que o nível de criatividade cresce. Somente o último desses grupos é composto pelos que podemos, genuinamente, chamar de estudantes. Para ele, o verdadeiro estudante vive, diante do objeto de seus estudos, uma angústia radical.

Ora, se a educação pode ser comparada à agricultura, o terreno, que é a alma do estudante, é fecundo conforme seja máximo o seu interesse no aprendizado da disciplina. Querer aprender não é tudo, mas sem querer (sem querer muito) a educação não acontece.

Tudo isso parece indicar que a solução para grande parte de nossos problemas civilizacionais não passa por simplesmente educar as pessoas, matriculando-as nos estabelecimentos oficiais de ensino, mas por fertilizar a alma dos pequenos (e dos grandes que ainda se abrem ao aprendizado), tornando-os dispostos a receber e a articular os elementos da cultura com vistas ao seu próprio florescimento como indivíduo.